Sabemos que o direito acompanha as mudanças sociais e econômicas de seu país, bem como leva em consideração suas relações internacionais. Não é uma coincidência as legislações brasileiras sobre propriedade industrial, intelectual e de software terem sido atualizadas logo após o surgimento da Organização Mundial do Comércio em 1994, visto que é de suma importância para o mundo a proteção dos bens intangíveis. No entanto, no atual nível informacional e globalizado do mundo, é no mínimo inocente concluir que a velocidade das normas está equiparada à da prática.
O ramo do direito imaterial, mais especificamente o de propriedade intelectual, nasceu da necessidade de proteger uma criação, como principal finalidade a sua monetização. Existe todo um sistema a nível global voltado à proteção dos direitos envolvendo esse desdobramento específico.
CONTEXTUALIZAÇÃO ATUAL
Nos termos da Convenção que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, assinada em 1967, o art. 2º, VIII enumera os vários objetos de proteção desse tema, foquemos em “invenções em todos os domínios da atividade humana”: a Lei 9.609/98 dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, contudo, o machine learning, ou aprendizado de máquina, age em cima de um aprendizado exponencial, apoiado em informações prévias e análise de comportamentos, comportando-se de modo independente das instruções e algoritmos originais.
Nesse contexto, o autor humano não tem domínio sobre as ações e as produções da inteligência artificial, pois a máquina agora pode criar de forma independente ao que o criador do programa elaborou. O desafio, então, é saber a quem atribuir a autoria da obra. No Brasil, a lei define a pessoa física como o autor de uma obra, ou seja, um robô não poderia ser detentor dos direitos autorais, recaindo sobre seu criador, o qual pode ter contribuído com nada ou quase nada à obra finalizada. Também tem se discutido, sobre criar uma pessoa jurídica para os robôs, a chamada pessoa eletrônica, contudo essa vertente é minoritária.
Cabe citar “Sunspring”, um curta-metragem que chamou atenção no festival Sci-Fi London por concorrer a uma categoria onde o desafio foi o de produzir um curta em até 48 horas. Foi revelado posteriormente que o roteiro e a letra da trilha sonora foram inteiramente criados por um sistema de inteligência artificial conhecido na época como Jetson.
SOB A LENTE DO DIREITO COMPARADO
Em nações como os Estados Unidos, a União Europeia e a Austrália, o posicionamento frente às obras criadas por I.A. é de que não poderão ser registradas em nome destas, pois os direitos autorais pertencem à pessoa física. Em contrapartida, na China, a corte da cidade Shenzhen decidiu em benefício da empresa de tecnologia Tencent, decidindo que a inteligência artificial chamada de Dreamwriter (que escreve notícias sobre finanças e esportes) é a real autora do conteúdo criado.
Em se tratando da classificação das obras criadas por inteligência artificial, há uma vertente que defende o domínio público, ocasionando na ausência de proteção pelos direitos autorais. Ao tomarmos essa postura, haverá um grande enfraquecimento do desenvolvimento de inovações no campo de inteligência artificial. Causaríamos, assim, a ausência de novos investimentos no campo do deep learning, visto que não haveria interesse pecuniário sobre o resultado final.
A legislação comparada pode ser uma alternativa. Segundo o Copyright, Designs and Patents Act, no Reino Unido, “nos casos de criação de trabalhos literários, dramáticos, musicais ou artísticos por computadores, o autor será a pessoa que fez os arranjos necessários para a criação da obra em questão”. Ou seja, a propriedade intelectual é atribuída a uma pessoa física que possibilita a criação da obra pelo computador, não à máquina, podendo o autor ser o programador ou mesmo alguém que inseriu dados ou definiu diretrizes que levaram à criação da obra tal como se deu.
DESAFIOS E POSSÍVEIS SOLUÇÕES
Á medida em que a inteligência artificial e o machine learning forem se desenvolvendo e evoluindo ao transcender a instruções originais, criar e adotar diretrizes próprias, será cada vez mais desafiador identificar o indivíduo por trás colaboração com a criação de uma obra específica.
Os avanços tecnológicos necessitam de uma regulamentação específica que garanta sua eficiência no mercado e segurança jurídica perante terceiros. Os governos locais de grandes mercados para empresas de tecnologiade grande porte vêm sendo pressionados a elaborar leis que regulamentem minimamente sua atuação nesse sentido.
No Brasil, o Projeto de Lei nº. 5.051/2019 visa a estabelecer os princípios para uso da Inteligência Artificial, e o PL nº 5.691/2019 institui a Política Nacional de Inteligência Artificial, para equilibrar as vantagens e os riscos de sua adoção. Esses projetos de leis são breves e trazem somente sete artigos cada, levando em consideração a preliminar de que essas inovações deverão servir aos indivíduos e respeitar os princípios constitucionais da dignidade e direitos humanos, além da proteção de dados pessoais e privacidade. Os projetos ainda estão em tramitação e mesmo após sua aprovação, regulamentações mais específicas serão necessárias.
O magistrado é o último guardião da solução do conflito, é necessária sua preparação mediante lacuna da lei, diante da situação do caso concreto, da melhor forma possível, mesmo porque o artigo 126 do CPC, como é sabido, diz que o juiz não se exime de julgar mesmo nos casos em que não há expressa previsão legal para tratar sobre determinada matéria. O jurista José Barbosa Moreira critica a falta de renovação por parte do magistrado, pois de nada adianta uma legislação moderna se os olhos dos juízes e operadores estiverem voltados ao passado.
Entender e aplicar propriedade intelectual no tocante à inteligência artificial, machine learning e robôs criativos é uma problemática relevante. Esse emaranhado de questões ainda não foi abordado no direito brasileiro e quando o for, revolucionarão os conceitos de autor e de obra. A legislação comparada pode ser uma alternativa, desde que bem aplicada mediante as lentes da antropofagia jurídica para adequar as particularidades do ordenamento jurídico do Brasil.
SUGESTÕES
Youtube: Webinar Tecnologia e Direito no sec. XXI (https://www.youtube.com/watch?v=ebYo0Ig_jJs)
Curta-metragem: Sunspring (https://www.youtube.com/watch?v=LY7x2Ihqjmc )
Reportagem: https://tecnoblog.net/320777/warner-bros-usara-inteligencia-artificial-decidir-filmes-aprovar/
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